terça-feira, 20 de março de 2012

Uma conversa sobre a África

Nos filmes, nas histórias em quadrinhos, nos seriados de TV e nos romances, a África é sempre um continente misterioso e mágico, onde são possíveis todas as aventuras. A imagem que nos transmitem diariamente os jornais e os noticiários de rádio e televisão é outra: a de uma parte do mundo assolada por secas, fomes, epidemias, guerras e tiranos.

Uma visão não desmente a outra, e ambas são incompletas. Se uma região da África foi atacada por nuvens de gafanhotos que devoraram todas as plantações, e nela há fome, nas outras a colheita se fez normalmente, os celeiros estão repletos e há abundância de comida. Se em determinado lugar há uma feroz luta armada, noutros as crianças vão regularmente à escola, de roupa limpa e sapatos lustrados. E a vida familiar transcorre normalmente, sem faltar alegria. Todos trabalham e produzem.

A África é um continente enorme, com uma grande diversidade geográfica. Nela há de tudo: altas montanhas – algumas, como Kilimanjaro, com os picos permanentemente cobertos de neve; grandes desertos, como o Saara; florestas que parecem sem fim, como a do Congo; grandes extensões de matas baixas e de estepes (nome que se dá a áreas cobertas por capim e outras plantas rasteiras); e zonas que estão sempre alagadas. Cerca de metade do continente é formada, porém, por savanas, uma paisagem na qual o relvado é interrompido por árvores baixas afastadas umas das outras. Numa região, faz frio na maior parte do ano. Noutra, predomina o calor úmido. E noutras, ainda, o calor seco ou a absoluta falta de umidade característica do deserto. Nas regiões costeiras do norte do continente e na parte meridional da África do Sul, o clima é temperado, com as quatro estações bem definidas, como na Europa.

Por quase todo lado, a ação do homem, durante séculos, alterou a paisagem, com roças e plantações, o pastoreio do gado, caminhos, aldeias e cidades. E também com vegetais trazidos de outros continentes. Da Ásia vieram o limão, a berinjela, a manga, a cana-de açúcar e a cebola. Das Américas, sobretudo do Brasil, a mandioca, o milho, a batata-doce, o amendoim, o caju e o ananás. O milho e a mandioca difundiram-se de tal modo que competem, em muitos lugares, com os alimentos básicos tradicionais, como o arroz nas duas Guinés, o sorgo e os diferentes tipos de painço ou milhete nas regiões de savana, o inhame na Nigéria, ou a banana na Uganda.

No entanto, a primeira imagem que nos vem à mente, quando falamos de África, é a de uma floresta escura, que a luz do sol não atravessa, e cheia de insetos e de animais perigosos.
Que não deixam de existir. A fauna africana é, aliás, riquíssima. Em nenhum outro continente há tantas espécies de grandes animais e em tão considerável número, mas é nas savanas que a maior parte deles se encontra. Lá vivem os grandes mamíferos: o leão, o leopardo, o guepardo ou chita, a hiena, o rinoceronte, a zebra, a girafa, o búfalo e os vários tipos de antílopes, cada qual mais belo e ágil do que o outro: o elande, o cudo, a impala, a palanca, o gnu, o sim-sim, o inhacoso, o guelengue e as numerosas espécies de gazelas. São muitas, muitíssimas, as aves, entre elas se destacando a avestruz, a cegonha, o flamingo, o pelicano e a águia-pesqueira. Nas florestas, os grandes animais são menos numerosos: a pantera, o crocodilo, o porco selvagem, o gorila e o chimpanzé. Nelas, predominam os pássaros, os répteis, os pequenos mamíferos que vivem em árvores, os insetos e os vermes.

Mas os filmes não mostram nas florestas animais enormes, como o elefante e o hipopótamo?
É verdade. O elefante vive tanto na floresta quanto nas savanas. E o hipopótamo, onde haja rios e lagoas. A crescente demanda por marfim na Ásia e na Europa, desde a idade Média, reduziu muito o número desses dois animais – o dente do hipopótamo era tão apreciado quanto a presa do elefante –, sobretudo depois da introdução das armas de fogo pelos europeus. A caça predatória fez enormes estragos entre outros mamíferos, felizmente hoje protegidos em grandes reservas onde só se permite o uso das máquinas fotográficas e das filmadoras.

Na Índia, o elefante é usado no transporte e na guerra. O mesmo aconteceu na África?
Que se saiba, somente na Antiguidade, em Cartago, Axum e Méroe. Cartago disputou com Roma, nos séculos III e II a.C., a supremacia no Mediterrâneo. O reino de Axum, na atual Etiópia, já era importante no primeiro século da era cristã, e o de Méroe, onde hoje é a República do Sudão, desde o século III. Mas nem a Índia, nem Cartago, nem Axum, nem Méroe domesticaram o elefante, pois este não era gerado nem criado em cativeiro. O animal era capturado ainda jovem, domado e treinado.
De forma permanente, a África só domesticou dois de seus animais nativos: a galinha-d’angola (pintada ou capote) e o jumento – este, no Egito. Recebeu da Ásia os animais que o homem pôs a seu serviço: o boi, o carneiro, o cavalo, o camelo, o porco, a cabra. Não conseguiu, para ficar num exemplo, selar a zebra ou atrelá-la a um carro. Os europeus tentaram fazer isso no século XIX, e foi um malogro completo: a zebra revelou-se não só indomesticável, mas também indomável, como, de resto, os outros mamíferos do continente – até mesmo o íbex, uma espécie de cabra selvagem existente na Etiópia. Os africanos conseguiram, é certo, ter animais selvagens em cativeiro e até cria-los e amansá-los. Os neguses ou reis da Abissínia ou Etiópia, até quase os nossos dias, criavam leões para exibi-los como símbolo de poder. O rei etíope, nas grandes cerimônias, apresentava-se aos seus súditos e aos emissários estrangeiros ladeado por dois leões seguros por serviçais.
Eu estudei as chamadas Guerras Púnicas na escola. Nunca, porém, pensei em Cartago como uma potência africana, e sim, como um país criado pelos fenícios no Mar Mediterrâneo.
Começou, de fato, como uma colônia fenícia, e era movida por seus interesses no Mediterrâneo, mas ficava na África. Na África do Norte. Para ser mais preciso, próxima à atual cidade de Túnis, naquela faixa de terras férteis e de clima temperado que se estende do Marrocos ao canas de Suez e está separada do resto da África pelo deserto do Saara.
Esse deserto só passou a ser atravessado regularmente pelos homens depois que seus habitantes, os berberes, começaram a utilizar o camelo, nos primeiros séculos da era cristã. Veloz, capaz de ficar sem água durante dez a 15 dias, com cascos esparramados que pisam bem tanto a areia fofa quanto o chão de pedra do deserto, podendo suportar cargas de 150 a 200 quilos, o camelo de uma só corcova ou dromedário deu às tribos do deserto a possibilidade de fazer o comércio entre as duas margens do Saara e de controlar militarmente os oásis, os poços, as pastagens ralas, as minas de sal e as rotas que percorreriam as caravanas. Estas eram poucas e não chegavam a aproximar permanentemente as duas margens do deserto. Por isso, aquela parte do mundo que os árabes viriam a chamar de Bilad al-Sudan, ou Terra dos Negros, continuou por muito tempo quase isolada do norte do continente. E será essa África do Sul do Saara o tema de nossas conversas.

O rio Nilo não contribuiu para aproximar a África do Norte do resto do continente? Não foi uma espécie de corredor?
Certamente, foi. Mas – atenção! – não era um caminho nada fácil, pois é interrompido seis vezes por grandes cataratas. E mais ao sul, há outro sério obstáculo à navegação. Onde o Bahr-el-Ghazal ou “rio das Gazelas”, proveniente do oeste, se junta ao chamado Nilo das Montanhas, que desce dos Grandes Lagos, para formar o Nilo Branco, estende-se o chamado Sudd. A palavra Sudd significa “barragem” e se aplica a uma vasta área coberta por uma vegetação flutuante que muda constantemente de formato e é tão densa que as canoas só passam por ela com enorme esforço de seus tripulantes.
Apesar dessas dificuldades, houve, desde os tempos mais antigos, contatos, ao longo do Nilo e de seus afluentes, entre os egípcios e os povos vizinhos, sendo muitas vezes difícil dizer se determinado costume, ideia ou objeto se difundiu do Egito para outras partes da África ou se teve origem ao sul do Saara e dali se propagou para o país dos faraós.

Os africanos que vivem ao norte do Saara são diferentes dos que vivem ao sul?
Os que vivem ao norte são predominantemente brancos, e os que vivem ao sul, negros. Mas estes também são diversos entre si. Um amara a Etiópia é tão distinto de um ambundo de Angola quanto, na Europa, um escandinavo de um andaluz. E um jalofo do Senegal é diferente de um xona de Zimbabué como um russo de um siciliano.
Na região meridional do continente, há um complicador: os chamados coissãs, que compreendem os bosquímanos e os tentotes. São povos baixos, pardo-amarelados, com face e nariz achatados, olhos estreitos como os dos chineses, cabelos que de tão encarapinhados mais parecem um gorro feito com grãos de pimenta-do-reino, e falam línguas que possuem cliques ou estalidos com valor de consoantes. Os coissãs ocupavam, no passado, a maior parte do sul da África, mas foram sendo expulsos para as áreas semidesérticas e desérticas, primeiro pelos negros e, depois, pelos colonizadores brancos.
A África é riquíssima de línguas e culturas. Falam-se no continente mais de mil idiomas. Mais de dois mil, segundo alguns estudiosos. Algumas dessas línguas, como o hauçá e o suaíli, são faladas por dezenas de milhões de pessoas e numa área geográfica bem extensa. Outras, por uns poucos milhares. Numa área onde predomina determinado idioma, pode haver pequenos bolsões de outros. Ou de outros. Muitas vezes dois grupos vizinhos se expressam em línguas inteiramente diferentes. E podem ter valores e maneiras de viver também distintos. Ou, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Ou até conflitantes.

Você pode nos dar um exemplo?
Posso. A mais oriental das cidadezinhas iorubas fica a pouco mais de uma centena de quilômetros da mais ocidental das aldeias ibos, na Nigéria. Entre os iorubas, o nascimento de gêmeos é celebrado como um acontecimento positivo e a mãe é tida como favorecida pelas divindades. Já entre os ibos, os gêmeos eram, no passado, considerados uma abominação e abandonados na floresta, enquanto a mãe tinha de se submeter a cerimônias de purificação. E não param aí as oposições e as dessemelhanças entre os dois povos. No plano político, enquanto os iorubas se organizavam em cidades-estados, com um rei sagrado, entre os ibos predominava a ausência de Estado, com as comunidades regidas pelos conselhos de anciões.
Não só as culturas diferem de povo para povo, como se foram modificando ao longo dos séculos. Há, contudo, certos traços comuns a todas elas, de modo que se pode falar de uma cultura africana como nos referimos a uma cultura europeia, ainda que sejam tão distintos os modos de vida em Portugal e na Finlândia.

Não são também diferentes os costumes dos pastores e os dos agricultores?
Claro que sim. Alguns povos africanos, como os pigmeus das florestas do Congo e os sãs ou bosquímanos das áreas semiáridas das África do Sul, vivem da caça e da coleta de raízes, frutas e mel. Outros, como os cóis ou hotentotes, os fulas os massais, da criação de gado. A maioria retira o sustento do cultivo da terra. Mas os pastores, enquanto conduzem o gado de uma pastagem para outra, colhem os frutos das árvores e o mel das colmeias que encontram no caminho, e suas mulheres podem cultivar cereais em pequenos roçados. Os lavradores não só pescam, caçam e recolhem o que lhes dá naturalmente a terra, como também podem possuir cabras, ovelhas e bois.

Provavelmente, havia também uma grande diversidade de organizações políticas na África.
É verdade. Alguns estados estendiam-se por amplos territórios e eram formados por várias nações, sob o comando de uma delas – e a esses estados chamamos impérios. Havia reinos menores, com uma ou mais nações. E outros ainda menores, que podemos comparar às cidades-estados da Grécia antiga. Essas várias entidades políticas eram compostas geralmente de uma família real, ou de duas ou mais famílias reais que se revezavam no poder ou o disputavam pelo voto ou pelas armas. O rei comandava uma nobreza privilegiada e com essa minoria compartia o mando sobre os homens comuns e os escravos.
Em algumas sociedades, os ferreiros, os ourives, os escultores, as oleiras e os bardos formavam castas profissionais. Chamamos esses grupos de castas porque seus membros se casavam entre si e eram desprezados pelas demais pessoas. Eram desprezados mas, ao mesmo tempo, temidos, porque tinham o poder de alterar a natureza. Os ferreiros transformavam o minério em facas, pontas de lanças e enxadas. Os escultores cortavam num pedaço de madeira a imagem de um ancestral. As oleiras faziam com o barro potes e gamelas. E os bardos, dielis ou griots, que eram músicos, poetas e historiadores, davam uma função nova às palavras quando compunham versos.

Mas havia povos, como os ibos, que, como você disse, não possuíam reis...
Nem reis, nem chefes permanentes, nem o que chamamos de estados. A unidade social era a aldeia ou um pequeno agrupamento de aldeias, onde as decisões eram tomadas por um conselho dos chefes das famílias que ali viviam e impostas, em muitos casos, pelas associações de poder (as chamadas sociedades secretas), cujos membros usavam máscaras assustadoras e mantinham a ordem, castigando os que se desviavam das normas costumeiras.
A maioria das sociedades africanas era altamente hierarquizada. Nobres, plebeus, estrangeiros, escravos, homens e mulheres, cada qual conhecia o seu lugar – nele ficavam desde o nascimento e, em muitos povos, até após a morte, pois, de acordo com suas crenças, o morto, se era aristocrata, continuava, no além, aristocrata, e o escravo, escravo. Mas havia também sociedades que se regiam pelo mérito, nas quais o poder do sangue se restringia às estirpes reais, e tanto um plebeu quanto um escravo podiam ascender às mais altas funções do estado, à fama e à opulência. Em outras, era a riqueza que determinava a posição social de cada indivíduo. E em outras, ainda, não havia diferenças, só se distinguindo dos demais os idosos que formavam o conselho dos anciões e, em caso de guerra, momentaneamente, aqueles tidos por mais capazes para conduzir a luta.

2 comentários:

  1. Só faltou citar o autor do texto, professor...

    SILVA, Alberta da Costa e. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

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